Já nestes primeiros meses, é possível concluir que o governo Lula é o que se poderia esperar dele, um misto de esforços pela recomposição de políticas públicas com a manutenção dos interesses majoritários do mercado; um misto de boa vontade para preservar alguns direitos esbarrando na manutenção das políticas anti-povo aprovadas nos governos anteriores; o fim da paridade de preços com o mercado internacional por parte da Petrobrás, sem contrapor os interesses do capital privado. A reaproximação com China e Rússia (reaquecimento dos BRICS) sem se distanciar dos Estados Unidos e da Europa. Uma vontade de ser independente sem assumir postura anti-imperialista.
Os setores mais à esquerda do governo Lula são o que todos os partidos reformistas sempre tentaram ser: uma via pacífica para os conflitos de classes. Eles sabem que existem as classes sociais e que os patrões exploram os trabalhadores, mas querem resolver isso pelo consenso ou pela pressão moral da maioria. Em todos os lugares, desde o desenvolvimento e da imposição do capitalismo, a social democracia foi esse esforço pela paz social entre posições irreconciliáveis.
Em comparação com os governos anteriores dirigidos pelo PT, o terceiro mandato Lula começa melhor em alguns aspectos, e pior em outros. Começa melhor por ter agora posições mais visíveis sobre questões indígenas, de gênero, direitos humanos, meio ambiente, e isso tem em si uma grande importância. Começa pior ao ficar mais amarrado à direita nas instituições e no Congresso Nacional, tendo, inclusive, que ceder ministérios a partidos da direita mais clientelista, venal e corrupta. Mesmo que isso seja uma contingência da chamada correlação de forças no Congresso Nacional, é um elemento que precisa entrar na análise.
O principal mérito de Lula, do seu partido e de todos os setores que o apoiaram na eleição de 2022 foi ter derrotado o projeto da extrema direita de cunho fascista representada pelo bolsonarismo, projeto que estava bem instalado nas instituições. Não se pode minimizar a importância da vitória eleitoral da frente (amplíssima) encabeçada por Lula na eleição de 2022, pois tirou o país da tragédia econômica, social, política e ambiental na qual estava se afundando. Um segundo mandato Bolsonaro representaria a aceleração do processo de empobrecimento e de morte para milhões de pessoas, mesmo que não conseguissem instituir um regime total e abertamente fascista. Isso é suficiente pra deixar evidente que não se pode minimizar e nem naturalizar como corriqueira a vitória eleitoral contra a extrema direita de corte fascista que tivemos no ano passado. Pelo peso do Brasil na América Latina e no mundo, a vitória de Lula tem uma importância imensa para muito além de nossas fronteiras, e isso também não pode ser menosprezado, pois representa um fator importante no enfrentamento que no mundo inteiro está se dando contra o fascismo que cresce em quase todas as partes.
Se o governo Lula oferece espaço para o debate de vários assuntos de suma importância para o conjunto do povo, e se pode propiciar alguns avanços em assuntos pontuais, como saúde pública, por exemplo, sempre foi um exagero de generosidade imaginar que um terceiro mandato Lula embicaria o Brasil para reformas profundas, para revogação das contra reformas impostas entre 2016 e 2022, que revogaria as privatizações feitas. Entre 2003 e 2016 não foi desprivatizada nenhuma empresa que tenha sido vendida (ou doada) na década anterior, portanto, não haveria de se esperar que em 2023 o governo fosse cancelar privatizações dos governos Temer e Bolsonaro. O que o governo fez no passado e talvez faça agora é investir mais nas empresas públicas que sobraram, e, quiçá, criar empresas públicas que possam tomar ou retomar espaços perdidos para o mercado privado. Ainda não se pode dizer se os setores internos ao governo que querem isso terão força para fazê-lo. Fator positivo em si é o governo ter tirado da fila da privatização várias empresas, como Correios, Serpro, Dataprev, e estar defendendo publicamente que o governo tenha na Eletrobrás o direito de voto equivalente à proporção de ações. Isso não significa desprivatizar, e sim, descorromper. O “abrasileiramento” dos preços dos combustíveis e do gás de cozinha foi uma decisão importante, que teria maior alcance e profundidade se viesse acompanhada da desprivatização da BR Distribuidora e da distribuidora de gás de cozinha.
Nas questões econômicas centrais, tanto no passado quanto no presente, o governo Lula vai tentar criar condições de crescimento econômico pela força de investimentos à disposição dos próprios monopólios privados. Se haverá financiamento público para pequenas iniciativas, para projetos comunitários e para cooperativas, não se pode ter dúvidas de que no projeto petista os monopólios privados continuarão a ser o motor do desenvolvimento, como as empreiteiras já o eram nos tempos passados. Os pequenos empreendimentos empresariais, o comércio dos bairros e a classe trabalhadora seguirão sendo pequenos empreendimentos, comércio dos bairros e classe trabalhadora parcamente remunerada. A luta já é pela recuperação do salário mínimo, o que naturalmente é uma luta justa e necessária. Uma luta justa e necessária que desenha exatamente o limite do projeto. É um projeto dentro da ordem. Quem quiser ver mais que isso, está buscando motivos para se decepcionar. Quem é de esquerda já sabia isso ou poderia tranquilamente avaliar desta forma já no ano passado. Logo, a análise sobre os potenciais e os limites do governo Lula deve ter o objetivo justamente de estabelecer balizas sobre o caráter do trabalho que a esquerda precisa fazer. Não se trata aqui de buscar concluir que todo mundo já sabia, e, portanto, o governo não deve ser criticado por aquilo que não prometeu. Não se trata de passar pano. Trata-se da esquerda de base marxista sair do campo reativo da crítica apenas aos outros e buscar fazer melhor seu próprio trabalho. Não se trata também de tirar responsabilidade da social democracia e da sua militância cotidiana para dominar todas as táticas, controlar todos os movimentos, só admitir a iniciativa política que possa ser dirigida por ela. Esta forma de ser e de se portar da social democracia é o fenômeno determinante na geração do sectarismo existente no movimento popular brasileiro.
Por outro lado, é um erro que os setores da esquerda de orientação marxista se deixem aprisionar dentro deste patamar do debate político de oposição . Porque a direita segue forte e atuante, porque a extrema direita e o bolsonarismo não estão liquidados. Óbvio que é necessário fazer a crítica às políticas erradas do governo Lula, assim como é necessário tentar contribuir para potencializar os setores mais avançados do governo. A forma de fazer isso é que precisa ser debatida.
Nas últimas décadas tem sido decrescente a inserção da esquerda marxista na base da classe trabalhadora, embora se continue falando frouxamente na essência revolucionária da classe operária. É uma essência que está sob toneladas de escombros formados pela ideologia da classe dominante e por outras tantas toneladas de areia movediça colocada pelas ilusões do "melhorismo" como limite semeado pela social democracia. Nós da esquerda de orientação marxista estamos devendo bastante em inserção real na classe trabalhadora e em todos os outros setores oprimidos da sociedade. Sem isso, ou seja, sem esforço real e sistematizado de inserção no proletariado e em todos os demais setores oprimidos, a retórica sobre a classe operária e sua essência revolucionária não passa de idealismo, ou ficção produzida pelo desejo.
Necessário que a militância socialista saia da idealização e aceite a classe trabalhadora tal qual ela se encontra em cada momento histórico, porque só é possível mudar aquilo que se conhece. Declarações de princípios e elaborações rebuscadas, por si só, não organizam e nem mobilizam a classe trabalhadora e nenhum outro setor de massa. É necessário partir da realidade tal qual ela se apresenta, e no caminho ir semeando ideias e atos de transformação.
A organização (ou o militante) que não tiver paciência histórica para ajudar a classe naquilo que ela está julgando importante em cada momento acaba ficando isolada, e falando apenas para seus iguais, outros militantes. Muitas vezes é efetivamente chato gastar a maioria do tempo fazendo apenas o trabalho imediato, lutando por pautas específicas e dentro da ordem. Mas é bom que cada militante saiba que, na imensa maioria das vezes, não tem outra forma de inserção que não seja se propondo a ajudar naquilo que o setor da classe está considerando importante em cada momento. Apenas em raras situações, que também acontecem, o setor da classe trabalhadora ou o setor social oprimido vai além da busca pelas pautas imediatas. Estamos falando das fronteiras entre a consciência de "classe em si" e a consciência de "classe para si".
O esforço militante na maioria das vezes e para o Brasil dos dias atuais, exige muito trabalho para que a classe se entenda como classe, saindo da ilusão de que pode deixar de ser classe trabalhadora e alcançar condição (status) social "mais elevado". A burguesia segue sendo muito eficiente em iludir a maior parte da classe trabalhadora com promessas vãs, como a ascensão social via micro empreendedorismo, etc. Isso coloca a consciência da maioria da classe numa situação pré sindical ou mesmo anti sindical. Sem se entender como classe (em si), a classe fica pulverizada no individualismo e se torna presa fácil para propostas reacionárias da extrema direita.
Nossa batalha permanente deve ser para manter ou para buscar instigar o surgimento da consciência de pertencimento de classe, que será inicialmente (e talvez por bastante tempo) uma consciência limitada aos objetivos imediatos, como melhoria de salário, ampliação de direitos, melhoria das condições de trabalho ou da qualidade de vida, etc. Pode ser também a luta por educação, saúde, dignidade, igualdade de gênero, combate ao racismo, liberdade de orientação sexual, defesa do meio ambiente... Todas estas e muitas outras lutas podem estar dentro da ordem, e com pressão política muitas delas podem ser parcialmente atendidas dentro da sociedade capitalista.
Nosso método deve ser se inserir para buscar alcançar os objetivos imediatos que a classe se coloca, e é no decorrer deste processo que a consciência de classe se desenvolve, pois haverá os choques de posição com os patrões e ou com o Estado. Evidente que é nos momentos de choque que a direção política do movimento tem melhores condições para politizar o debate e expor a evidência dos limites da luta na sociedade capitalista.
Enfim, precisamos nos inserir na classe trabalhadora e em todos os outros setores oprimidos em que seja possível. É preciso valorizar cada possibilidade de trabalho existente e cada possibilidade de trabalho novo. Se os partidos sociais democratas têm tido maior êxito de inserção na classe trabalhadora é porque eles têm sido "mais eficientes" neste trabalho. Essa maior eficiência deles é resultado também do fato de que trabalham muito mais no horizonte do senso comum, da aceitação do status quo. Por razões diametralmente opostas, nós marxistas nos isolamos mais porque nos falta paciência histórica para acompanhar o setor da classe em suas perspectivas imediatas. O desafio é encontrar a equação que permita manter o ânimo para o trabalho imediato, e, sempre que possível, inserir elementos sobre a necessidade de transformação social. A vigência do governo Lula facilita o trabalho de inserção nas bases sociais exploradas e oprimidas, o que, em tempos de crescimento do fascismo, é uma situação favorável que não deve ser desperdiçada
Direção Nacional - Iniciativa Comunista