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Rebeldes fundamentalistas com apoio da Turquia lançam ofensiva na Síria reacendendo a guerra civil

Os rebeldes fundamentalistas que dominam parte do noroeste sírio lançaram uma ofensiva contra Aleppo, principal cidade da região. Com o apoio da Turquia, os rebeldes, conhecidos por promoverem casamentos infantis nos territórios ocupados (ver aqui), retomaram áreas e vilarejos no entorno da cidade e continuam avançando.

As forças do governo sírio, presidido por Bashar Al Assad e reconhecido pelas Nações Unidas, enfrentam anos de guerra civil e resistem graças ao apoio da força aérea russa. Contudo, a estabilização da região com o apoio de Moscou, que se envolveu diretamente no conflito a partir de setembro de 2015, não pode ser considerada uma vitória.

A Síria continua ocupada por todos os lados. Além da ocupação dos rebeldes fundamentalistas, a Turquia ocupa faixas do país na fronteira norte. Os sírios curdos estabeleceram um governo semiautônomo no norte e nordeste do país, mantendo uma relação tensa, mas de neutralidade, com o governo Assad. Nessa mesma região, os Estados Unidos mantêm pequenos enclaves em colaboração com os curdos. Há anos, os EUA extraem petróleo sírio na região contígua ao Iraque. A área do país vizinho é dominada pelos curdos de forma tutelada pelos EUA, de onde também extraem petróleo de forma ilegal. Na fronteira sul, os EUA mantêm um enclave militar em apoio aos rebeldes com suporte de suas forças estacionadas em sua base militar na Jordânia. Além disso, pequenos enclaves das forças conhecidas como Estado Islâmico estão espalhadas no território controlado pelo governo sírio e, é claro, Israel domina as colinas de Golã já muito antes da guerra civil.

Estados Unidos e Arábia Saudita atuaram como articuladores da guerra civil

A guerra civil na Síria se iniciou após forças políticas formadas por grupos religiosos muçulmanos que, descontentes com o governo laico de Bashar Al Assad entre outros problemas, iniciaram protestos na região que hoje dominam. O que seria apenas uma crise política se transformou numa guerra civil com apoio do governo estadunidense, presidido por Barack Obama, que financiou o levante e organizou a defesa ideológica da intervenção, utilizando o argumento falacioso de que o governo atacava os direitos humanos (ver aqui). Até mesmo Marcelo Tas, uma figura de destaque na mídia tradicional brasileira, se envolveu no caso, como revelou um dos telegramas vazados por Edward Snowden ao Wikileaks. O apresentador foi chamado à embaixada dos EUA para apoiar ideologicamente o início da guerra contra a Síria, e o apoio se confirmou posteriormente no Twitter do antigo apresentador do CQC, revelado por comunicação endereçada à Hillary Clinton, principal articuladora da guerra-civil.

Com a mudança de regime na Síria, o objetivo dos EUA na região era acabar com um aliado de primeira hora do governo do Irã, aliança que à época estava separada geograficamente apenas por um Iraque destruído pela invasão estadunidense, onde forças amigas do país persa tendiam a ter um papel cada vez mais preponderante, como de fato veio a acontecer. Lembremos que Síria e Irã gozavam de uma longa estabilidade política e se tornaram aliados naturais na defesa de sua soberania contra o imperialismo. A estratégia do governo Obama foi atacar o país com economia e forças militares mais frágeis na região, mas ele não poderia fazer isso sozinho.

A Arábia Saudita, que há muito tempo vinha financiando grupos fundamentalistas em parceria com os EUA, como o Talebã, por exemplo (criado para combater os laços do Afeganistão com o regime soviético), foi peça fundamental no conflito. Uma das mais violentas e autocráticas ditaduras do mundo, o governo dos Saudi ajudou a fortalecer e tornar mais extremistas os rebeldes fundamentalistas na Síria, importando material humano, fomentando interpretações religiosas fundamentalistas – o que resultou na explosão de execuções pelos tribunais oficiosos no território dominado por esses grupos, entre eles a Al Nusra, que promove também casamentos infantis* – e, claro, servindo de apoio logístico para a chegada de armas nas mãos dos rebeldes.

O regime sírio, que não mantinha muitos investimentos na área militar, não conseguiu conter o conflito, perdendo territórios importantes dia a dia. A demonização do governo pela propaganda imperialista, inclusive com tramas até hoje mal explicadas, como a acusação de uso de armas químicas, que segundo a Síria foi obra dos próprios americanos, isolou o governo, que basicamente tinha, como aliado, o Irã, com sérias restrições ao apoio que podia ser oferecido.

Vale lembrar a massiva campanha encabeçada pela carniceira Hillary Clinton em apoio ao início da guerra (ver aqui e para a continuação do conflito: link 1, link 2, link 3 e link 4). Infelizmente, parte da esquerda brasileira é ignorante sobre o papel que o Partido Democrata tem tido nos conflitos encabeçados pelos EUA. A posição deste partido em questões internacionais nada deixa a dever para os republicanos, sendo muitas das vezes pior, como por exemplo, ao dar apoio a grupos neonazistas na Ucrânia, onde o filho de Joe Biden assumiu um alto posto depois do golpe de 2014. Os Democratas também deram apoio a grupos fundamentalistas no Oriente Médio e no Norte da África, participaram da mudanças de regime e da destruição de países inteiros, como a Ioguslávia, sendo Biden um dos principais políticos a fomentar o conflito, além de terem promovido o bombardeamento da Líbia. Sem contar a vassalagem ao projeto de genocídio do povo palestino. Na atualidade, Clinton e Biden são duas das principais lideranças mundiais da direita, tendo um papel tão ou mais desprezível do que Donald Trump, que pode ser considerado um neófito perto dos dois.

A entrada dos curdos e da Turquia no conflito

No norte e nordeste da Síria a população é majoritariamente curda, e devido as condições que enfrentavam, tinham uma posição frágil na região. Espalhada por uma área que abrange ainda o norte do Iraque e sudeste da Turquia, esse povo foi, principalmente nesses dois países, alvo de perseguições e ataques, principal fator que os levou a defender a criação de um país independente na região. O regime sírio, devido sua laicidade e não ligação com uma etnia específica, nunca se envolveu na perseguição aos curdos, mas o sentimento nacionalista nessa população manteve uma relação não muito amistosa com o regime.

Com a guerra civil, os curdos sírios viram sua situação mudar drasticamente. A fronteira sudeste do território curdo abrange uma área do Iraque onde grupos fundamentalistas financiados pelos EUA e Arábia Saudita atuavam livremente. Já a fronteira oeste dava diretamente para a principal área de conflitos da guerra civil. As forças de Assad se concentravam em impedir que a guerra avançasse em direção à Damasco, e assim, os curdos se tornaram vulneráveis aos ataques dos rebeldes fundamentalistas. O fato de não serem muçulmanos os deixava ainda mais suscetíveis às atrocidades dos rebeldes. Diante dessa situação, e tendo a possibilidade de apoio dos curdos na Turquia e Iraque, os curdos sírios se levantaram em armas para combater os rebeldes e criaram um exército coeso em sua região de abrangência, ajudando a conter os insurgentes.

É nesse contexto que os Estados Unidos veem a oportunidade de explorar o petróleo sírio, localizado na região curda. Fazendo jogo duplo, os EUA fizeram acordos com os curdos em troca de estabelecer poços de exploração protegidos por enclaves militares na região, o que se mantém ainda hoje. O mesmo acontece na região curda do Iraque, em que os EUA exploram o petróleo em troca de apoio, em uma relação de equilíbrio conflituoso. Não podemos esquecer que os EUA, para conter o Irã, apoiaram Saddan Hussein, governo que perseguiu os curdos no norte do Iraque.

A situação dos curdos preocupou a Turquia, já que é nesse país que os curdos estão mais organizados. O projeto de independência do chamado Curdistão tomaria parte do território turco. Foi assim que a Turquia entrou no conflito em apoio aos rebeldes fundamentalistas, o que mudou o conflito, pois enquanto o apoio dos EUA e da Arábia Saudita se dava na forma de financiamento e treinamento, a Turquia entra no conflito com suporte de suas forças regulares estabelecendo rotas de suprimentos e apoio logístico direto, já que tanto a área dominada pelos curdos como pelos rebeldes faz fronteira com o país.

Nova ofensiva ameaça integridade do território sírio

No dia 27 de novembro os rebeldes fundamentalistas lançaram uma grande ofensiva com apoio da Turquia em direção à Aleppo, principal cidade da região e segunda mais populosa do país, tendo sido um dos principais focos da guerra civil no passado. A maior parte da cidade foi tomada pelos rebeldes no dia 29 de novembro, que avançaram em direção ao território curdo, ao leste. Enquanto este texto é escrito, no dia 30, forças russas tentam conter o avanço, bombardeando posições dos rebeldes e destacando tropas para a região. Os curdos avançaram em auxílio à Assad, à medida que as tropas do governo foram obrigadas a recuar ocupando partes de Aleppo que resistiam. Segundo compilado de informações de blogs militares, fontes oficiais e imprensa local recolhidas de fontes diversas no dia 1º, os curdos ainda mantém posições na cidade, mas o entorno foi tomado pelos rebeldes.

Enquanto tomavam a maior parte de Aleppo, uma segunda coluna de rebeldes se dirigiu ao sul em direção às cidades de Hama e de Homs, outro importante centro urbano. O avanço acontece de forma muito rápida enquanto tropas do governo são obrigadas a se retirar, provavelmente para evitar perdas humanas e militares maiores, além de buscar uma futura recomposição. Outros focos aparecem por todo o país e até mesmo em Damasco há células que trabalham de forma coordenada com os rebeldes. Informações dão conta de que as forças governamentais conseguiram deter o avanço no dia 1º e recuperaram parte do território perdido nesse eixo, não deixando os rebeldes avançarem.

Provavelmente preparada há muito tempo, a ofensiva se aproveita da fragilidade russa devido à guerra da Ucrânia, já que Moscou é um dos principais suportes do governo sírio. A eleição de Donald Trump, que se mostra menos propenso a apoiar os rebeldes mais ligados a interesses econômicos representados pelos democratas, também explica o tempo da ofensiva aproveitando as últimas semanas do governo Biden. Outro fator é a confusão instaurada pela limpeza étnica promovida por Israel na Palestina e o subsequente conflito com o Hezbollah.

A proximidade com o acordo de cessar fogo entre Israel e Hezbollah joga suspeitas de apoio israelense ao conflito, o que foi denunciado pelo Irã. Os sionistas, depois de ter anunciado que pretendia criar uma zona tampão ao sul do rio Litani, aceitaram recuar em troca de uma virtual retirada das forças do Hezbollah na região que seria controlada pelo exército libanês. O motivo provável foi o alto número de baixas enfrentados na tentativa de invasão.

Lembremos que a Síria, além de aliada do Irã, vem sendo alvo de ataques israelenses pontuais desde a época do início da guerra civil. O país sionista se aproveita da total impossibilidade geopolítica e militar do país reagir, mesma estratégia covarde utilizada contra o Líbano, que não pode usar suas forças regulares contra Israel. Precisamos considerar ainda diversas situações: o fortalecimento do Hezbollah nos últimos anos e a liberdade que essa força tem de transitar em território sírio pela proximidade com o regime; a presença, cada vez maior, de forças iranianas na Síria; a estabilização do Iraque (permitindo maior trânsito de forças militares e equipamentos desde o Irã); a ocupação das colinas de Golã, o que pelo direito internacional dá à Síria total direito de atacar Israel. Tudo isso coloca a desestabilização do país na agenda sionista.

A posição da Turquia em apoio ao fundamentalismo na região mostra sua verdadeira posição pró-imperialista. Apesar dos discursos vociferantes de Erdogan contra Israel, nos bastidores ele faz o trabalho sujo na Síria para os sionistas, Europa e Estados Unidos. As críticas e ameaças mostraram-se mera retórica para consumo da população turca, que apoia os palestinos de forma massiva.

O governo turco justifica seu apoio aos rebeldes com um acordo feito com a Rússia para estabelecer uma zona tampão. Contudo, o contexto hoje é totalmente diferente e é preciso ser muito ingênuo para acreditar nessas desculpas esfarrapadas. O significado da ofensiva é a retomada do conflito, e o objetivo óbvio é uma mudança de regime na Síria, garantindo a presença da União Europeia e dos Estados Unidos na região, diminuindo a possibilidade de resistência armada contra Israel, dando continuidade ao genocídio na Palestina e fortalecendo o governo autocrático da Arábia Saudita na região. Já o objetivo turco é usar os fundamentalistas para destruir os curdos.

A pouca visibilidade que se dá ao conflito na Síria dá indicações de que não haverá pressão internacional contra a Turquia e outros aliados dos fundamentalistas para que cessem a tentativa de mudança de regime. Há uma ameaça real de que o conflito escale ainda mais nos próximos dias, ameaçando até mesmo o governo em Damasco. A resposta russa e iraniana e as capacidades curdas serão essenciais nesse contexto, enquanto o exército sírio se reorganiza para deter os rebeldes. Contudo, o mal já está feito, o que poderia caminhar para um acordo persistente de paz agora se encaminha para a extensão do conflito para além do horizonte de qualquer previsão.

A crise que enfrenta o imperialismo leva à multiplicação dos conflitos e indica que nosso futuro será um continuum de guerras. Não podemos ficar indiferentes a isso. Somente os ingênuos podem acreditar que estaremos imunes no médio e longo prazo.

* Além da promoção de casamentos infantis por grupos como Al Nusra, a guerra-civil levou a um aumento significativo dessa prática entre refugiados sírios, sejam deslocados no próprio país ou em campos de refugiado no exterior.

Rodrigo Choinski – Jornalista e Mestre em Sociologia do Trabalho

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