CARTA DE APRESENTAÇÃO
A Iniciativa Comunista – IC é uma organização de caráter partidário singular, autônoma em relação a todas as outras organizações políticas, constituída por militantes oriundas (os) de organizações comunistas e por novas referências da luta popular e da militância por uma sociedade sem exploração e sem opressão. De forma livre nos organizamos para contribuir no processo de construção do partido necessário para a revolução socialista no Brasil. Avançaremos conforme nossas próprias forças no processo de inserção nas bases sociais exploradas e oprimidas, com o objetivo de elevar o nível de consciência e organização e fortalecer a luta popular e a luta pelo partido.
Nos entendemos como seguidoras (es) de todas as lutas feitas pela resistência indígena contra a colonização europeia; pelos milhões de pessoas escravizadas que lutaram contra a escravização de pessoas; pelo movimento proletário brasileiro contra a exploração capitalista. Da mesma forma, nos sentimos herdeiras (os) do movimento comunista internacional, desde a Liga Comunista de 1848; passando pela criação da Associação Internacional de Trabalhadores (I Internacional); pela Comuna de Paris; pela II Internacional desde a fundação em 1889 até a traição oportunista de 1914; pela Revolução Bolchevique de 1917; pela constituição de III Internacional, com seus erros e acertos; saudamos a luta heroica do Exército Vermelho que derrotou o nazi-fascismo.
No Brasil, saudamos os operários que fundaram o PCB em 1922; nos inspiramos na força da Coluna Prestes; adotamos como nosso o esforço pela construção da Aliança Nacional Libertadora e seu projeto de tomada do poder em 1935; nos vimos no trabalho constituinte dos comunistas entre 1945 e 1946; fomos derrotados igualmente em 1964; saudamos todas e todos que lutaram, deram seu esforço, seu sangue e até sua vida contra a ditadura militar de 1964-1985; nos identificamos com as decisões políticas de Luiz Carlos Prestes quando em março de 1980 formalizou o rompimento com o direitismo da maioria do Comitê Central do PCB de então; reconhecemos em Luiz Carlos Prestes o primeiro dirigente comunista brasileiro a superar a tese errada do etapismo, e a fazer autocrítica como nenhum outro fez. A última década de vida de Luiz Carlos Prestes (1980-1990), curiosamente, é a menos conhecida pela militância comunista brasileira, e a ocultação deste legado dificulta o processo de construção do partido necessário para a revolução socialista no Brasil.
Ao longo das últimas três décadas, não por acaso depois do fim da União Soviética e do socialismo em todo o leste europeu, temos atuado no movimento popular (sindical, estudantil, social) resistindo a todos os ataques que a classe economicamente dominante, em sua vinculação de subordinação com o imperialismo, vem impondo através de sucessivos governos. Reconhecemos a importante diferença existente entre os governos da direita tradicional pró-imperialista (1985 a 2002) e os governos encabeçados pelo Partido dos Trabalhadores entre 2003 e 2015, mas isso não nos impede de perceber que as alianças com setores dos monopólios e do latifúndio e o não rompimento com o imperialismo são obstáculos intransponíveis à realização de um projeto popular que possa avançar para além de um limitado e circunstancial reformismo.
O bloco de poder dominante no Brasil, que são os monopólios, o latifúndio e o imperialismo, não será convencido a retroceder por argumentos políticos e nem por maioria parlamentar que se tenha a ilusão de constituir. Este bloco de poder é herdeiro em todos os sentidos do latifúndio escravocrata com suas chibatas que açoitavam marinheiros negros em plena república, que aniquilavam quilombos, canudos, contestados, que ainda massacram o povo todos os dias, que impõe a segregação social e racial travestida de “guerra às drogas”. A classe dominante brasileira nunca teve um projeto de desenvolvimento soberano para a sociedade brasileira. Desde sempre preferiu se aliar aos interesses dos países mais desenvolvidos do capitalismo, numa aliança subordinada, colocando o Brasil, na divisão internacional do trabalho, como país produtor de matérias primas e produtos primários para os países mais desenvolvidos, abdicando do desenvolvimento tecnológico próprio que pudesse constituir um projeto econômico soberano. O próprio processo de desenvolvimento industrial brasileiro foi feito principalmente a partir de pacotes tecnológicos trazidos de fora, mediante capital estrangeiro, cujo lucro nunca ficou no Brasil a não ser para gerar mais lucro a ser transferido depois. Algumas exceções e esforços contrários foram boicotados e aniquilados. O processo de democratização política, social e econômica da sociedade brasileira não será feito pela burguesia e nem em aliança com qualquer setor dos monopólios privados. Depende da organização popular que tenha como tática geral derrotar o bloco de poder dominante e tomar o poder para as classes trabalhadoras e as massas oprimidas, mediante um projeto estratégico socialista.
Foi com esse entendimento que os processos de emancipação popular do continente latino-americano nas últimas décadas puderam avançar mais que os governos reformistas que tivemos no Brasil entre 2003 e 2016. A Revolução Bolivariana na Venezuela e a constituição do Estado Plurinacional na Bolívia, mesmo com os contratempos que têm enfrentado, resistem e seguem adiante. Todo o nosso reconhecimento e toda a nossa gratidão à luta e à resistência heroica do povo cubano em sua Revolução Socialista! Nossa saudação e nosso apoio à luta do povo Palestino pelo seu território e por sua soberania plena como sociedade livre e com Estado laico. Apoiamos estas e todas as lutas populares do nosso continente e do mundo, com todas as suas dificuldades e com todas as suas esperanças. Dentro de nossos limites, estaremos sempre dispostos a apoiar, política e concretamente, todos estes processos.
O internacionalismo proletário é um dos nossos princípios, porque a solidariedade de classe precisa ultrapassar as fronteiras nacionais e os espaços continentais, porque a vitória definitiva do socialismo em qualquer parte do mundo depende da sua adoção em todo o mundo, mas também porque a dignidade de todos os seres humanos é o objetivo maior a ser alcançado, e isso só será possível quando não houver mais exploração capitalista e nem opressão, seja de raça, de gênero, de nacionalidade, de orientação sexual ou filosófica. “Pátria é humanidade”, dizia José Martì, líder e herói da independência cubana no final do século XIX, e essa consigna define a força da solidariedade internacional que tem a revolução cubana há mais de seis décadas. O pressuposto comunista é a igualdade substancial e o respeito à dignidade de todas as pessoas em todas as partes do mundo. Nossa fronteira é a humanidade, embora saibamos a importância e a validade dos processos de transformação em cada país, com suas peculiaridades, sua cultura, seu potencial objetivo e também simbólico.
Entendemos que todo Estado na sociedade capitalista é uma autocracia da classe economicamente dominante sobre a maioria da população, mesmo nos países onde existem níveis de liberdades coletivas e individuais relativos. Evidente que defendemos sempre a máxima democratização possível das relações sociais, mas não tem como não ver que na sociedade capitalista não existe a possibilidade real de democratização da vida, a começar pelo fato de que o Estado sob o capitalismo não permite democratizar as riquezas que são socialmente produzidas. Sem democratizar o uso da terra, dos territórios urbanos, e, especialmente, sem socializar as riquezas produzidas pelo conjunto da sociedade, a democracia se torna uma palavra quase vazia, limitada à minoria abastada da população. A democracia que queremos construir é aquela em que as riquezas sociais sejam colocadas a serviço do conjunto da sociedade, já que foram expropriadas de forma injusta e ou violenta por uma minoria que se apossou dos meios para produzir e, ao longo de séculos, explorou a maioria do povo. Este processo de democratização das relações econômicas e sociais só pode ser feito por uma revolução política protagonizada pelas classes trabalhadoras e demais setores oprimidos, eliminando a propriedade privada dos grandes meios de produção. Será uma revolução política feita pela maioria hoje explorada e oprimida contra a minoria e contra o Estado autocrático atual. O Estado a ser criado, nascido desta revolução política da maioria, terá como finalidade organizar a produção e a distribuição das riquezas, e impedir que as forças reacionárias reinstalem o regime capitalista. A este Estado da maioria revolucionária contra minoria reacionária, chamamos de ditadura do proletariado, entendendo como uma necessidade que só seria evitável se as atuais classes dominantes abdicassem de se organizar de forma violenta contra a sociedade futura.
Nossa defesa do socialismo como contraponto à exploração e opressão capitalista não está baseada apenas na nossa vontade ou na nossa ideologia. Não se trata apenas de opinião ou de ideologia. Trata-se de uma necessidade objetiva. O modo de produção capitalista traz em si mesmo contradições insanáveis por dentro da ordem, tendo as crises como sua maior constância. É um sistema que quanto mais cresce, mais produz crise, e sempre nas crises uma proporção da sociedade é jogada para fora das condições de vida digna. As relações sociais da sociedade capitalista (relação entre proprietários e não proprietários dos meios de produção, quer dizer, entre exploradores e explorados) são incapazes de absorver a capacidade das forças produtivas da sociedade capitalista. Ou, invertendo, no capitalismo, as forças produtivas não cabem dentro das relações de produção. Isso gera as crises de superprodução de mercadorias, que tem como “remédio” as crises recessivas, que trazem desemprego em massa, redução dos salários, cortes de direitos, ou seja, empobrecimento, fome e morte. No capitalismo, o que é remédio para o sistema e para a classe dominante, é veneno mortal para a maioria do povo e para a sociedade. Se já não bastasse esse fato incontestável, que pode ser estatisticamente comprovado ao longo dos últimos séculos, o capitalismo trás consigo outras contradições insuperáveis por dentro do capitalismo. As crises provocam guerras, seja pela ampliação dos mercados para os monopólios dos países imperialistas, seja para o controle de recursos energéticos, seja para fomentar o crescimento da indústria da guerra, com produção de mais armas, materiais, equipamentos, tecnologias de espionagem e violência.
O capitalismo não é insustentável apenas do ponto de vista econômico e humanitário. O capitalismo e sua necessidade de produzir mercadorias numa velocidade e quantidade sempre maiores, produz a obsolescência das coisas numa velocidade muito maior que a resistência das matérias e as necessidades humanas. A publicidade capitalista produz necessidades subjetivas para produtos que ainda estão sendo fabricados, assim como programa a obsolescência das mercadorias para começar a produzir uma versão mais avançada do mesmo produto na semana seguinte à venda, no crediário, da versão anterior. O capitalismo, portanto, está acelerando em progressão geométrica a destruição do meio ambiente. Nenhuma legislação restritiva, nenhuma convenção internacional, e menos ainda a propaganda dos governos, impedirão à continuidade da degradação ambiental que levará (já tem levado) à ocorrência de tragédias climáticas, desertificação dos continentes, alagamento das cidades litorâneas, disseminação de pragas, envenenamento das águas, surgimento de doenças e pandemias. A anarquia da produção capitalista não permitirá o controle humano sobre a máquina econômica. Basta ouvir com atenção os discursos transmitidos pelos principais meios de comunicação (monopólios privados), que se reivindicam defensores do meio ambiente: todos eles afirmam dez vezes por dia que não se pode contrapor às leis do mercado. Ou seja, jogam veneno e difundem ilusões. Portanto, quebrar o modo de produção capitalista e colocar em seu lugar o planejamento socialista é uma necessidade objetiva vital para a continuidade da sociedade humana.
Nós lutamos contra o golpe de 2016 que, de forma ilegítima e ilegal, tirou Dilma Rousseff do governo central do Brasil. O fizemos porque estava evidente que os objetivos dos golpistas era acelerar o processo de ataques aos direitos trabalhistas, sociais e previdenciários, e acelerar também os processos de privatizações, tanto das empresas públicas quanto dos serviços públicos. Da mesma forma, nos manifestamos contra a perseguição política feita contra o ex-presidente Lula através dos órgãos de polícia, ministério público e poder judiciário, porque também era óbvia a intenção de não permitir a eleição de um governo de origem popular e que não atendesse à totalidade da pauta dos monopólios, do latifúndio e do imperialismo. O golpe contra Dilma, continuado como processo político-jurídico contra Lula, garantiu sem sobressaltos a transição reacionária entre o governo Temer e o governo Bolsonaro. Um é continuidade do outro, e os encargos que Temer recebeu de Bolsonaro mostram isso, assim como a aparição de Temer na conjuntura de setembro de 2021, refazendo por cima o pacto entre os chefes do bloco de poder econômico e chefes dos poderes institucionais.
O Brasil é um país cuja classe dominante nunca deixou sair da dependência e subordinação aos interesses dos países mais desenvolvidos economicamente, seja no período colonial, seja nas sete décadas da dinastia Orleans e Bragança, e o mesmo vale para todo o período republicano. As tentativas de desenvolvimento autônomo dos raros governos nacionalistas que tivemos, foram boicotadas de forma pertinaz pela maioria da classe dominante, sempre impondo golpes preventivos contra o desenvolvimento soberano do país, sobretudo quando isso pudesse representar a ampliação de direitos para as classes trabalhadoras e para as massas oprimidas em geral. Bolsonaro não é um genocida solitário! Ele representa e sintetiza o projeto da maior parte da classe dominante brasileira, que se constituiu ao longo das décadas e séculos montada sobre inumeráveis genocídios, de povos originários, de africanos (as) escravizados (as), de posseiros (as) do Brasil profundo, e se mantém e consolida sobre o genocídio continuado da população pobre e negra das periferias. O genocídio é um projeto de classe no Brasil.
Com esta percepção, entendemos ser um retumbante erro acreditar que é possível modernizar e democratizar o Brasil em aliança com setores dos monopólios privados, com setores do agronegócio, com setores do capital financeiro. Eles são o bloco de poder que ao longo dos tempos tem impedido que a sociedade brasileira saia da dependência, do atraso, que democratize as terras e as demais riquezas. A Iniciativa Comunista entende que para mudar o Brasil é necessário um projeto de poder que possa derrotar o bloco de poder dominante e seu Estado autocrático. Este bloco de poder precisa ser constituído pelas classes trabalhadoras pauperizadas, pelas maiorias oprimidas, pelas juventudes da periferia, e por todos os possíveis aliados, como setores da classe média, estudantes, a intelectualidade de esquerda, autônomos, pequenos agricultores e pequenos comerciantes dos bairros.
Para além dos processos eleitorais, para além das lutas por reformas populares, para além da luta pelos direitos, e por dentro deste trabalho cotidiano e necessário, a Iniciativa Comunista – IC se constitui para organizar e acumular forças para abolir a sociedade capitalista e construir a sociedade socialista. Convidamos todas as pessoas que são capazes de “se indignar contra qualquer injustiça cometida contra qualquer pessoa em qualquer parte do mundo” a vir nos conhecer e nos ajudar na construção deste projeto.
Florianópolis, verão de 2021.